Texto de Franklin Cunha, médico
"O aborto é uma manifestação desesperada das dificuldades da mulher para realizar uma opção livre e consciente na procriação e uma forma traumática de controle da natalidade. Mesmo numa consideração não religiosa, o aborto é um signo de rendição, nunca uma afirmação de liberdade". (Alessandro Nata, secretário-geral do Partido Socialista Italiano. Rinascita, 1975)
Para Isaiah Berlin (1909 – 1993), os valores fundamentais do ser humano são diversos e nem todos compatíveis entre si. A possibilidade de conflito e tragédia nunca poderá ser eliminada por completo, nem na vida pessoal nem na social. A necessidade de se eleger entre os valores é, pois, uma característica humana da qual não se pode fugir. A liberdade é um desses valores e por isso precisa ser definida. E recorremos ao mesmo Berlin, o qual distingue dois tipos de liberdade: a negativa e a positiva. O sentido negativo do conceito de liberdade está contido na pergunta: "até que limites eu posso agir sem prejudicar os limites das outras pessoas"? O sentido positivo deriva do desejo por parte do ser humano de ser seu próprio dono, de que ninguém decida por ele e de não ser dirigido por outros homens como se fora uma coisa, um animal, um escravo. Para Berlin, os dois conceitos são distintos e suas diferenças produzem conseqüências teóricas e práticas distintas e importantes. Daí a possibilidade deles poderem entrar em choque irreconciliável e quando isso acontece surge o problema da escolha. A liberdade, em todo o caso, não é o único valor. O grau que um ser humano dela desfruta deve ser equilibrado com outros valores – igualdade, justiça, direito à vida, felicidade, segurança, ordem pública – e por isso a liberdade não pode ser ilimitada. A do mais forte – econômica, intelectual ou fisicamente falando – tem que ser limitada. O Estado não pode oprimir os cidadãos; aos patrões não deve ser permitido explorar os empregados; os homens devem ser impedidos de subjugar as mulheres; os pais não podem dispor da vida de seus filhos, mesmo quando ainda não nascidos.
O eixo central sobre o qual gira todo o discurso abortista é a libertação da mulher da escravidão reprodutiva. A liberação do aborto seria, em última instância, o preço a pagar para se conseguir a verdade emancipação feminina. Analisando o slogan: "o útero é meu e dele faço o que quero", na verdade exprime um conceito de propriedade privada capitalista. O critério básico de opção sobre a vida do filho é somente o interesse pessoal. Esse modo de opção caracteriza um individualismo radical. É como se o empresário dissesse: "a fábrica é minha e faço dela o que me aprouver"; o banqueiro afirmasse: "o dinheiro é meu e o aplico onde quiser" ou o agricultor aclamasse: "a terra é minha e nela faço o que bem entender". "O útero é meu e com o embrião faço o que quiser" significa a mais completa vitória do consumismo sobre o valor da vida. Nesse sentido a relação mãe-filho não é mais dimensionada em termos do amor entre seres humanos, mas em função da propriedade privada, egoísta, hedonista e predatória. A mulher passa a ser possuidora de um filho-objeto, como possui um automóvel, um vestido, uma jóia, uma conta bancária. E o filho ou feto-objeto também passará a ser a premissa da criança-objeto que, de acordo com o contexto político-social e pessoal, poderá, como um objeto qualquer, vir a ser eliminado. Tal tipo de raciocínio reflete não somente uma maneira de se entender as relações mãe-filho, mas, de modo mais amplo, todo um estilo de viver a sexualidade. Com a liberação total da prática do abortamento, o "consumo do sexo" ficará associado a todas as demais formas de consumo, porque então tudo se reduzirá à busca egoísta do prazer. A banalização do aborto tem como premissa e conseqüência a banalização do ato sexual.
Um outro aspecto do qual as bravas feministas não se aperceberam é de que elas em sua justa luta assimilaram os paradigmas machistas. Pensando bem, um estilo de vida que despreza a maternidade, a feminilidade e reduz o sexo a um "flash" de prazer é um estilo despoticamente falocrático. Na verdade, o macho na sociedade de consumo ilimitado é o único que verdadeiramente se beneficia com a liberação do aborto, porque dessa maneira ele pode desobrigar-se de todas as responsabilidades em relação à mulher. A ele cabe o prazer do orgasmo (nem sempre compartilhado pela parceira) e a gratificante confirmação de sua máscula capacidade reprodutora. À mulher cabe o papel de receptáculo desse prazer e o dever dramático de eliminar a nova vida, para que o varão se livre das conseqüências de sua recreativa e irresponsável atuação.
A batalha pelo aborto livre resulta, assim, numa luta não mais para a liberdade da mulher, mas para a maior liberdade do homem. É ele que lhe concederá o direito de abortar para, uma vez mais na história, relegá-la coercitiva e tragicamente às suas funções de mulher-objeto. No processo de abortamento – tanto no liberado como no clandestino – a mulher sai dilacerada, ofendida, ultrajada. Com seu útero vazio, mas com seu coração cheio de dor e ressentimento.
A estratégia da luta feminista – e o pretendido direito ao aborto se encaixa dentro dessa luta – talvez deva ser direcionada não para participação nas aspirações e no poder androcrático, mas para a modificação do conceito global de poder, tal como ele foi até agora historicamente estabelecido. E certamente a liberdade da prática do abortamento em nada contribuirá para essa modificação. Assim a mulher terá na construção da cidadania um papel realmente ativo e não apenas, como a história a engaiolou até agora, a passiva função de um mero pássaro cativo e decorativo.
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