sábado, 31 de outubro de 2009

LIVROS, LIVROS À MANCHEIA – parte II

A CRÍTICA DA RELIGIÃO

São abundantes hoje os livros, os artigos, os documentários, os filmes e, enfim, as manifestações de intelectuais e cientistas criticando a religião e as manifestações religiosas em geral. O livro "A Crítica da Religião", do filósofo e teólogo Urbano Zilles, publicado por EST Edições, contribui com o outro lado desse debate.

Situando a religião no contexto social moderno, o autor descreve a crítica da religião na Modernidade e analisa a forma com que essa crítica aparece no pensamento de diversos filósofos e cientistas da atualidade, de Hume a Dawkins, passando por Marx e Freud, entre outros. O livro termina com a refutação de alguns argumentos da crítica da religião em geral.

Os primeiros parágrafos da introdução dão o tom do livro: "A crítica sistemática da religião é um fenômeno típico da modernidade. O termo 'crítica da religião' deriva da filosofia crítica de I. Kant. A partir de seu criticismo filosófico, formula-se a exigência de conciliar a religião com os princípios da razão. Toda a religião, incluída a cristã, precisa do bom senso e da permanente vigilância da são razão. O fato de o cristianismo basear-se na revelação divina não o isenta da crítica, pois a palavra de deus somente nos é acessível na palavra humana. Esta carece de interpretação. Quando a religião rejeita a crítica, sujeita-se ao fideísmo, abrindo as portas para fundamentalismos e fanatismos, tão ou mais nocivos à verdadeira causa quanto os ateísmos. E quando a crítica recusa a religião, dá-se à palavra 'crítica' um uso que não corresponde ao seu sentido etimológico, ou seja, afirma-se que, para aderir a uma religião, sempre se deve renunciar à sua capacidade crítica. Ora, a crítica da religião tem sua origem na própria religião com os profetas, os Padres e os doutores da Igreja. Por outro lado, Kant exagerou, quando tentou limitar a religião à mera questão da razão pura. A vida humana, quando reduzida à pura racionalidade, instrumental ou científica, torna-se desumana, pois o homem não se reduz à pura razão. Ele é também coração, sentimento e emoção. Fé e razão não se excluem, mas se complementam mutuamente. Não deixamos de ser racionais, quando nos comunicamos, quando cremos ou amamos. No dia-a-dia vivemos mais da crença que da certeza científica. Ora, para crer em Deus, não se deve renunciar à razão, pois, quem crê num sentido para a vida e para o mundo, não deixa de ser racional".

Uma análise lúcida, racional e intelectualmente honesta. É bom ver que ainda há espaço para a lucidez e para a honestidade, para o bom uso da razão humana, em um debate que se torna tanto mais ferrenho quanto mais permeado de ideologia. Pois é inegável a existência de uma verdadeira dimensão religiosa do humano, que não pode ser subtraída sem que se corra o risco de comprometer o homem todo.

LIVROS, LIVROS À MANCHEIA – parte I

O PRINCÍPIO DE HUMANIDADE

Neste último livro da trilogia composta por "A Tirania do Prazer" (1998) e "A Refundação do Mundo" (1999), Jean-Claude Guillebaud quer descobrir, afinal, em que consiste a humanidade. O que é isso, que é comum a todos nós e que nos permite dizer que somos "humanos", "pessoas humanas"? Sua análise, permeada de realismo e isenção, foge, como ele mesmo diz, do "catatstrofismo apavorado" e do "otimismo beato".

Transcrevo aqui algumas palavras do próprio autor, na apresentação do livro: "Como sempre na história humana, o limiar decisivo que estamos a ponto de transpor abre-se tanto para perigos como para esperanças. Todo aquele que deseja que os segundos predominem deve proibir-se, ao mesmo tempo, de ficar cego e de se tornar imprudente. Com efeito, se um naufrágio nos ameaça, devemos olhá-lo de frente. Não para disso tirar não sei qual discurso apocalíptico, mas para melhor conjurá-lo".

Na primeira parte do livro, Guillebaud analisa o conceito de humanidade e as tendências reducionistas atuais (animal, máquina, coisa, órgãos), para então questionar se o homem não se encontra em vias de desaparecimento. Na segunda parte, traz à luz algumas ideias do século XIX e compara esse modo de pensar com algumas ideologias que hoje voltam ao centro do palco. Na terceira parte, busca caminhos de reconciliação com o humano, apontando dificuldades e desacertos.

O epílogo, mais do que concluir o livro, indica um caminho aberto e aponta para cada um de nós: "O princípio de humanidade, definitivamente, tem como característica ser causa de si mesmo. Ele é poder de se fazer, ou seja, de se escolher. Aquilo que reivindicamos aqui – a eminente dignidade do ser humano, é uma opção, na verdade. Quer se trate de economia, da política ou da tecnociência, 'tratamos o homem conforme a ideia que dele fazemos, do mesmo modo que fazemos uma ideia do homem conforme o modo como o tratarmos'. Essa circularidade remete cada um de nós,portanto, a uma responsabilidade que nenhuma ciência, nenhuma técnica, nenhuma fatalidade mecânica ou genética poderiam eliminar. O princípio de humanidade existe, porque queremos que ele exista. É a essa vontade – obstinada e alegremente dissidente – que precisamos doravante nos consagrar ".

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Fotos da África - Rio Omo


Esta foto mostra duas pessoas de uma tribo africana, entre várias, que habitam a Etiópia, às margens de um rio chamado Omo, do qual nunca tinha ouvido falar até há poucos dias, quando recebi um e-mail com um anexo contendo esta e outras fotos.
O lugar é realmente lindo e as fotos são excelentes. Mostram como as pessoas dessas tribos têm o costume tribal, milenar, de pintar o corpo, das mais variadas formas. Explica que essa marca cultural passa de geração em geração - aprende-se pela observação e depois cada um é livre para criar novas formas e cores, usando o corpo como tela. São tribos que vivem ainda na préhistória, sobrevivendo da agricultura, da caça e da pesca, conforme a abundância que lhes proporciona o rio, em cujas margens estão estabelecidos.
Conforme o e-mail que recebi, o governo etíope pretende construir uma hidrelétrica, utilizando-se do rio Omo, para gerar energia elétrica para o país. Com isso, o rio seria grandemente reduzido em seu volume e essas populações, que dele dependem para a sua sobrevivência, tornar-se-iam miseráveis.
A preocupação do fotógrafo, que fez as fotos como forma de divulgação e protesto pela situação em si, na verdade não é com o fato dessas pessoas ficarem reduzidas a uma situação miserável ou perderem seus meios de subsistência, mas (pasmem!) com a "perda dessa cultura milenar"!!!!
O fotógrafo, Hans Sylvester, nascido na Alemanha, exalta a integração dessas tribos com a natureza e a pureza e beleza de sua arte. Fotografa-os e protesta contra a barragem que será construída, mas não protesta contra o fato de, em pleno século XXI, pessoas estarem vivendo em situação primitiva, sem acesso à saúde, educação, saneamento básico, moradia digna. E, apesar de tanto apreciar o modo de vida dessa gente, não deixa o conforto da civilização para ir viver com eles e partilhar de sua "integração com a natureza".
Ora, é da evolução humana, da história do homem, que as culturas se modifiquem com o correr do tempo. Inevitavelmente, algumas passam por transformações tais que deixam de existir. Outras formas culturais foram, são e serão absorvidas por culturas mais novas ou mais fortes. O próprio modo de vida dos grupamentos humanos leva à modificação de suas culturas.
Sendo assim, é uma grande hipocrisia defender a "preservação" da cultura das tribos que habitam as margens do rio Omo, pois isso implica mantê-los vivendo na Idade da Pedra, em condições subhumanas, indignas para o homem do século XXI. É hipocrisia tratar pessoas como peças de exibição ou como animais de zoológico (só que, neste caso, ao inverso - são condenadas a viver em seu ambiente natural da mesma forma que seus ancestrais, há cinco mil anos ou mais). É hipocrisia querer preservar a cultura em detrimento do ser humano, pois é a pessoa quem dá sentido à cultura.
Se a barragem é inevitável (não estou afirmando isso, é preciso ver as necessidades do povo da Etiópia e as condições de preservação ambiental), o que se deveria fazer é a promoção dessas pessoas, para que, de maneira digna, possam continuar vivendo sem cair na miserabilidade, inseridas no ambiente cultural de hoje, com acesso a, pelo menos, o mínimo que o progresso humano pode proporcionar atualmente.
Especialmente, dever-se-ia promover essas pessoas de tal forma que elas poderiam escolher, sem matiz ideológica pesando sobre essa escolha, se gostariam ou não de preservar o costume de pintar o corpo. Quem sabe, prefeririam pintar o corpo em ocasiões determinadas, festivas, enquanto, no resto do tempo, viveriam como qualquer ser humano com acesso aos bens da vida? Ou poderiam querer continuar pintados.
O problema, mesmo, é que a eles não foi dada a liberdade de escolher...
Mas... não é assim que tratamos nossos índios?